segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quem somos nós?

Falam  Autores Judeus do Século III ao Século I a.C.

  
"Habitando um número considerável de judeus em nosso território (...) e desejoso de lhes ser agradável (...), nós decidimos mandar traduzir vossa Lei do hebraico para o grego, para termos estes livros também em nossa biblioteca, com os outros 'livros do rei'" (O rei Ptolomeu II Filadelfo ao sumo sacerdote Eleazar, segundo a Carta de Aristéias a Filócrates, séc. II a.C.).

A partir do século III a.C., com a assimilação da língua e dos gêneros literários gregos, vários judeus tentam explicar aos seus conterrâneos e aos gregos cultos, especialmente de Alexandria, que o judaísmo é uma religião respeitável e recomendável pela sua antigüidade e pelos feitos de seus líderes. 
Escrevendo em grego, e em gêneros literários gregos - da historiografia à filosofia - autores como Aristéias, Artápano, Teodoto, Jasão de Cirene e outros nos legam uma literatura de apologia do judaísmo, mas que é, ao mesmo tempo, excelente testemunho da resistência e da submissão desse povo e dessa cultura ao dominador grego.
Neste artigo, proponho a abordagem, em um primeiro momento, desta literatura de um modo geral e, em seguida, da Carta de Aristéias a Filócrates e de alguns historiadores como Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano e o Pseudo-Hecateu.
Naturalmente esta é apenas uma amostragem, mas creio que bastante significativa, do processo de helenização que avança inexoravelmente entre os judeus durante os últimos três séculos antes da era cristã.

 1. Literatura Judaica em Grego

Muitos autores judeus da época helenística escrevem em grego. Seu objetivo é, às vezes, o de explicar aos seus conterrâneos da diáspora, que falam grego ou lêem apenas o grego, a validade e a importância dos antigos preceitos e da Lei judaica. Outras vezes, eles escrevem também para demonstrar aos gregos, com os quais convivem, que o judaísmo tem práticas bem fundamentadas, antigas e de muito valor.
Temos preservados, quase sempre só fragmentariamente, textos dos mais variados gêneros. Desde a tradução da Torá do hebraico para o grego, passando pela historiografia, carta, poesia, teatro até a filosofia.
É impossível sabermos até onde estes textos sobreviventes representam a totalidade da produção judaica em língua grega. Mas, mesmo assim, seu valor permanece, por serem os únicos textos deste tipo que possuímos[1].
O primeiro texto que chama a nossa atenção é a mais antiga tradução da Bíblia hebraica para o grego, a chamada LXX[2].
A LXX não é apenas uma tradução. É uma releitura da Bíblia com características específicas. Eis dois exemplos desta releitura:
Em Ex 3, 14ss Deus não é Iahweh, mas o Senhor (Kýrios): faz-se um esforço para deslocar Deus de um contexto local e particular, o do povo judeu, para uma dimensão universal, a realidade do mundo após Alexandre Magno.
No início do Sl 18 fala-se de Iahweh como rocha, fortaleza, abrigo, escudo, torre etc. Os LXX traduzem isto em conceitos mais abstratos, não-semíticos: Iahweh é apoio, refúgio, protetor etc, conceitos aceitáveis para a mentalidade grega.
Estritamente falando, a LXX é só o Pentateuco, que é traduzido por volta de 285 a.C. ou pouco depois. Os outros livros são traduzidos posteriormente, e para a maioria não temos datas exatas.
A Carta de Aristéias a Filócrates, do séc. II a.C., diz que 72 tradutores, enviados pelo sumo sacerdote de Jerusalém, vertem a Torá para o grego em 72 dias, a pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo (285-247 a.C.).
Esta história de 72 tradutores é mera ficção, mas hoje sabemos que:
a) o rei Ptolomeu II precisa conhecer a lei da comunidade judaica para administrá-la
b) Alexandria é um centro onde há grande curiosidade intelectual
c) além do que, os judeus de Alexandria, que falam só o grego, precisam conhecer as suas leis, para a organização social da comunidade e para atender às necessidades litúrgicas locais.
Outro setor extremamente interessante é o da historiografia: Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano, Cleodemo Malco, Aristéias, o Exegeta, o Pseudo-Hecateu e 2 Macabeus (Jasão de Cirene) são os principais representantes deste gênero[3].
Estes são os primeiros autores judeus do período helenístico que escrevem em grego. São geralmente ou da Palestina ou do Egito e cobrem um período que vai do século III a.C. ao século I a.C.
Neles as tradições religiosas judaicas e gentias são mixadas e fundidas: eles manifestam várias características da época helenística e, por isso, são preciosos para a pesquisa sobre a helenização do judaísmo. Eles iluminam o processo social pelo qual o primeiro grupo judeu se acomoda e se adapta à cultura dominante grega na qual ele vive.
Estes autores escrevem sobre sua herança judaica, mas usando os novos gêneros da cultura em que vivem, e mostram confiança nesta cultura.
São importantes também porque fazem interpretações midrashicas da tradição bíblica e iluminam os modos de leitura bíblica tanto na Palestina quanto na diáspora.
A maioria destes textos é preservada, em primeiro lugar, pelo escritor Alexandre Poliístor, de Mileto, que, em Roma, na metade do séc. I a.C., coleta materiais de várias proveniências e autores, inclusive sobre os judeus e de autores judeus. Como falta a Alexandre Poliístor originalidade no modo de tratar seus materiais, suas fontes estão bem preservadas.
Entre suas muitas compilações, Alexandre Poliístor escreve Perì Ioudaíôn, "Sobre os judeus", onde cita os autores judeus helenistas.
Da obra de Alexandre Poliístor temos apenas fragmentos, citados por Eusébio na sua Praeparatio Evangelica IX, 17-39, e alguns por Clemente de Alexandria, em Stromata[4].
C. R. Holladay observa que Eusébio cita tais fragmentos "porque eles foram preservados por um autor gentio que tornou-se um valioso testemunho para a antigüidade do judaísmo e, por extensão, para a credibilidade da cristandade"[5].
Destes historiadores tratarei ainda neste artigo, apenas deixando de lado Cleodemo Malco - samaritano do século II a.C. que num único fragmento trata de Abraão e sua descendência - e Aristéias, o Exegeta, talvez do Egito, no século II a.C., e que trabalha a história de Jó[6].
Na área da poesia conhecemos dois autores interessantes: Fílon épico e Teodoto.
Fílon, poeta épico, deve ser situado entre os séculos II e I a.C. em Jerusalém. De seu poema "Sobre Jerusalém" (Perì tà Hierosólyma) temos três fragmentos citados por Eusébio, na Praeparatio Evangelica IX, 20; 24; 34. O primeiro trata de Abraão, o segundo de José e o terceiro canta a abundância da água em Jerusalém.
Teodoto de Siquém é citado por Eusébio, Praeparatio Evangelica IX,22. O seu tema é a história da cidade de Siquém. Teodoto pode ser situado entre os séculos II e I a.C. Provavelmente é um samaritano[7].
Ezequiel, o Trágico, do séc. II a.C., que escreve provavelmente em Alexandria, é uma isolada testemunha da conversão de temas bíblicos em dramas gregos.
Através de Eusébio e Clemente de Alexandria, conhecemos trechos de seu drama "O Êxodo" (Exagôgê). Ezequiel segue de perto a narrativa bíblica, mas a enfeita com muitos misdrashim. Sua linguagem tem afinidade com Eurípedes e outros trágicos do séc. V a.C.[8]
Finalmente, no campo da filosofia é necessário citar Aristóbulo, judeu alexandrino do séc. II a.C., talvez até mesmo um dos sábios do Museu. Ele conhece a fundo a filosofia grega, especialmente Pitágoras, Sócrates e Platão. E ele é um eclético em seu pensamento.
Sua obra reproduz temas da Torá, que são explicados filosoficamente. Ele descreve o conteúdo do Pentateuco para mostrar ao mundo culto grego que a lei mosaica já possui tudo o que os filósofos ensinam[9].
Agora, é preciso dizer que a filosofia judaica produzida na época helenística permanece ligada aos conceitos da sabedoria palestina. O objetivo desta filosofia não é a discussão da lógica ou da física, e sim da ética. "O objetivo dos filósofos judeus era apenas um: educar as pessoas na verdadeira moralidade e piedade"[10].

[1]. Cf. SCHÜRER, E., The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, Edinburgh, T. & T. Clark, 1986, pp. 470-473. 
[2]. Cf. LAMARCHE, P., La Septante, em MONDÉSERT, C., (org.), Le monde grec ancien et la Bible (Bible de tous les temps 1), Paris, Beauchesne, 1984, pp. 19-35; JOBES, K. H. & SILVA, M., Invitation to the Septuagint, Grand Rapids, MI, Baker Books, 2000. 
[3]. Cf. HOLLADAY, C. R., Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians, Chico, California, Scholars Press, 1983, pp. 1-5. 
[4]. Eusébio, bispo de Cesaréia, na Palestina, vive entre 265 e 340 e escreve importantes obras em grego, entre elas a famosa "Historia Ecclesiastica", a "Praeparatio Evangelica" e a "Demonstratio Evangelica". Clemente de Alexandria vive aproximadamente de 160 a 215. Um dos mais notáveis padres gregos, famoso por seu amplo conhecimento da literatura e da filosofia gregas. Deve ter nascido em Atenas, mas vive e ensina em Alexandria. Além de outras obras, escreve o Stromata, "Miscelâneas", cujo objetivo é reconciliar a fé cristã com a razão e a filosofia. 
[5]. HOLLADAY, C. R., o. c., pp. 8-9. 
[6]. Ambos podem ser lidos em Idem, ibidem, pp. 245-275. 
[7]. Cf. HOLLADAY, C. R., Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets, Atlanta, Georgia, Scholars Press, 1989, pp. 51-299. Fílon e Teodoto são comentados também por SCHÜRER, E., The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, pp. 559-563. 
[8]. Cf. HOLLADAY, C. R., Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets, pp. 301-529. 
[9]. Cf. HOLLADAY, C. R., Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. III: Aristobulus, Atlanta, Georgia, Scholars Press, 1995. 
[10]. SCHÜRER, E., The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 567. O grande filósofo judeu helenizado é obviamente Fílon de Alexandria (20 a.C.-54 d.C.), de quem não trato aqui por estar além da época demarcada para este estudo.

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